Se há valor inerente à amizade que tem sofrido uma degradação acentuada ao longo das últimas décadas a lealdade assume um lugar destacado nessa condição.
Os amigos, os poucos que justificam tal designação à luz de um conceito de amizade digno desse nome, parecem desvincular-se aos poucos do compromisso de honra tácito que esse tipo de relação pressupõe.
A confiança, antes indispensável para distinguir um amigo de qualquer outra pessoa dos nossos conhecimentos, vê-se hipotecada a toda a hora em inconfidências, difamações e mesmo traições clássicas (as que derivam da proximidade excessiva, os amigos do peito com o dito mesmo à mão).
E o novo retrato da amizade, a moderna, acaba por assentar na partilha de banalidades e na distância prudente ou displicente que os moldes light em voga aconselham ou induzem na maioria da pessoas.
Sou particularmente sensível ao tema da lealdade porque dela deriva a possibilidade real de depositarmos confiança em alguém. E não me excluo dos amigos capazes de alinharem no abastardamento das relações, admito, pois não sou isento de culpas nesse particular. Resta-me o consolo de nunca ter ido longe demais, de não ter cometido alguns pecados dos muitos que senti na pele de protagonista da acção. Fraco, bem sei, para quem parece empoleirar-se num estatuto de grande elevação moral. É um equívoco, logo à partida porque nem sempre resisti à tentação de não pagar com a mesma moeda e porque da mesma forma que me indigno com certos exageros dos outros não deixo de me reportar aos meus e sempre com a mesma repulsa pelos comportamentos que sinto como censuráveis seja em quem for.
A lealdade não consiste numa espécie de recrutamento implícito nas contagens de espingardas entre amigos desavindos, como aprendi nos últimos anos. Vai muito para lá disso e implica, isso sim, uma garantia por parte de alguém que confia que não será traído/a por quem tome por mais próximo, nomeadamente familiares e amigos “da casa”.
Nem por esses podemos estender a mão sobre o fogo, pois corremos sério risco de nos queimarmos na proporção da confiança demasiada que depositámos em alguém.
E não podemos esperar que mesmo quem desmascaramos na autoria de uma deslealdade qualquer assuma essa falta e tente recuperar a confiança no futuro. O golpe é sempre de misericórdia pois as ligações acabam por se revelar tão fracas que desabam ao primeiro abanão, ninguém dá o braço a torcer porque não há quem reconheça algum mal na falha em aspectos que poucos, quase nenhuns, cultivam.
A amizade é quase uma obrigação, um ritual, vivida dessa forma precária, aligeirada, que muitos defendem porque lhes convém às naturezas insensíveis e egocêntricas. Faz falta poder dizer que se tem amigos, ainda que estes de nada sirvam senão de referências para encher a agenda dos telemóveis ou a listagem de contactos no email. Ou porque é bom ter pessoas emocionalmente fragilizadas, defesas desguarnecidas pela tal amizade que as torna alvo fácil de manipulação mesmo quando esta vai no sentido de constituir uma traição a outra pessoa, a outro amigo qualquer.
Seja homem ou mulher, pouca gente se dispõe de facto a investir numa amizade séria, à semelhança do que acaba por se reflectir na sua relação com o amor. As pessoas preferem de facto, talvez porque os tempos assim o exijam, relações descartáveis ou cuja durabilidade não dependa de qualquer tipo de manutenção. Querem amores sem restrições, amizades sem complicações, querem servir-se dos outros sem chatices nem alarido como acabam por aceitar, pela tal necessidade das listas preenchidas, que outros se sirvam de si para o mesmo propósito.
Claro que existem as excepções a qualquer regra e ao longo da vida conheci talvez uma meia dúzia delas.
Mas talvez esteja a pecar um nadinha por excesso nessas contas..