Muitos vivenciam o
amor como um rasgo a que a alma se submete intencionalmente para exigir que a
mão do amado a costure.
O problema é que a mão do outro nem sempre está disponível para esse trabalho: a
alma sangra, dói, e os rasgos se expandem…
A dor, quando bem
resolvida, pode ser um prenúncio de beleza. Mas, para que o belo
de fato
advenha, é preciso viver a dor, senti-la, tocá-la, integrar-se a ela, e
transmutá-la,
sabedores de que o vivenciar a dor também é parte do exercício de
amor.
Já tive muitos castelos
desmoronados na poeira dos dias. Quem não os teve? E a dor,
nesse caso, é
inevitável.
Em nossa alma aprendiz,
amar é desejar estar ao lado do outro, dentro do outro. É
querer ser o outro
sem sair de si mesmo.
É construir uma redoma de sonho e ali inserir o amado,
sob a eterna e vigilante
proteção dos nossos olhos.
E queremos que o
outro caiba exatamente no nosso sonho e viva o nosso projeto de existência. Que
ele esteja no cenário que construímos e encene o papel que lhe escrevemos.
E, num repente, algum
novo vento nos sopra e mostra que o outro não é exatamente o
aquele a quem
julgamos amar.
Percebemos que ele tem segredos e mistérios maiores que
pensávamos e ficamos
perplexos ao perceber que ele tem caminhos traçados e que
quer percorrê-los, muitas
vezes, sem nós.
Perdemos a voz ao
saber que a alma do outro é hóspede e hospedeira de outras almas. E as nossas
pernas tremem ao constatar que a redoma era ilusão.
Que todo o castelo de amor
era ilusório. E a dor chega e castiga e fustiga a alma com cem mil acusações.
O que nos sangra,
num momento como esse, é a obrigação de desamar.
Mas será que isso existe?
Os poetas, há muito, já apregoaram que o amor é sempre “para sempre”.
Questionaremos as verdades
poéticas? Banalizaremos o amor? Faremos dele um
bibelô barato e quebrável
destinado a adornar, por breves dias, as estantes da nossa
alma?
Ocorre que somos
ainda aprendizes da arte do eterno. O amor não reside senão no
desejo da
plenitude do outro. Ele não se esmera a não ser no respeito ao outro. Ele não
pulsa
a não ser para o querer o bem e sonha que o outro, pássaro livre em perfeição
de
voo, possa vislumbrar, dos cumes de si mesmo, os mais belos sentimentos e
paisagens da terra.
E assim, quando o
outro não mais deseja estar ao nosso lado, isso nos fere e sangra, mas o que
nos massacra não é o outro. É desejo egoístico de aprisionar um espírito que
também, assim como nós, tem sede de infinitos.
Tenho comigo que o
que mais dói é a obrigatoriedade que nos impomos, quando o castelo desmorona,
de desamar o outro. E embora talvez não o tenhamos amado de fato, fizemos um
esboço de amor e é desorientador apagá-lo. Desamar é doloroso demais, porque o
desfazimento do amor é contrário à nossa natureza etérea, espiritual, eterna.
Devemos, sim,
exercitar o desapego; não o desamor. Desejar a liberdade, a integralidade, a
plenitude do outro. Compreender que o que dói não é o amor não correspondido,
mas a quebra das correntes (talvez até de ouro) com que tentávamos prender
alguém. Apenas quando soubermos apreciar com encantamento a liberdade, seja ela
nossa ou de um ser amado, teremos conhecido a face invisível e invencível de um
amor verdadeiro.
E a alma, outrora
rasgada, fará das cicatrizes uma arte emoldurada e rebordada de vida, na
certeza de que toda a dor, bem lá no fundo, labora a nosso favor.
Nara Rúbia Ribeiro
Escritora
Escritora